sábado, junho 05, 2010

O Casamento Ideal para o Artista






Eu não tenho hoje pelo casamento aquele horror de outrora, comparável ao horror do cavalo selvagem pela manjedoura. Bem ao contrário: tenho corrido tanto pelo descampado da sentimentalidade, que uma manjedoura confortável em que mãos benévolas me sarrotem uma palha honesta - sorri-me como uma entreaberta paradisíaca. Eu precisava de uma mulher serena, inteligente, com uma certa fortuna (não muita), de carácter firme disfarçado sob um carácter meigo - que me adoptasse como se adopta uma criança: que me pagasse o grosso das minhas dívidas, me obrigasse a levantar a certas horas, me forçasse a ir para a cama a horas cristãs - e não quando os outros almoçam - que me alimentasse com simplicidade e higiene, que me impusesse um trabalho diurno e salutar, e que, quando eu começasse a chorar pela Lua, ma prometesse - até eu a esquecer... Esta doce criatura salvaria um artista de si mesmo - que é o pior abismo de um artista - e faria uma daquelas obras de caridade que outrora levavam gente ao Calendário. Mas, ai! Onde está esta criatura ideal? Onde está esta luz no mar, esta torre de segurança, esta fonte de caridade? A não ser nalgum romance inédito de Octave Feuillet - em parte nenhuma.



Eça de Queirós, in 'Carta a Ramalho Ortigão'

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